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Dívida ativa, controle de legalidade e reforma tributária

Cristiane da Costa Nery

Júlia Silva Araújo Carneiro

 

O Projeto de Lei Complementar (PLP) 108/24 busca, entre outros pontos, regulamentar a estrutura do Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (CG-IBS), entidade pública, criada sob regime especial e independente, prevista na EC nº 132/23 para viabilizar o exercício integrado, por estados, DF e municípios, das competências administrativas referentes ao novo imposto.

 

Ainda pairam incertezas sobre como funcionará o CG-IBS e, no que importa a este artigo, como ocorrerão as etapas de inscrição em dívida ativa e cobrança de créditos tributários.

 

Cabe ao legislador complementar, então, detalhar como se efetivará o princípio da cooperação (artigo 145, § 3º, da Constituição), não só entre entes federativos (federalismo cooperativo), mas também entre as referidas carreiras, no mesmo nível e nos diferentes níveis federativos (administração tributária cooperativa).

 

*Considerações sobre a inscrição de créditos em dívida ativa e o controle de legalidade*

Em um cenário hoje pouco colaborativo, inclusive entre os entes da federação, impõe-se o rompimento com paradigmas atuais para que o compartilhamento do novo imposto não comprometa as políticas públicas e a atuação nos contenciosos administrativo e judicial.

 

As competências sobre o IBS deverão, portanto, ser exercidas de forma integrada e com respeito às atribuições constitucionais, de forma colaborativa. Para tanto, alguns pontos devem ser enfrentados no PLP 108.

 

O primeiro ponto recai sobre a competência para inscrição de créditos tributários em dívida ativa e o prévio controle de legalidade.

 

Não é de hoje que a inscrição em dívida ativa é atribuída aos procuradores. Em 1988, essa competência exclusiva foi inserida expressamente na Constituição para a PGFN (artigo 131, § 3º) [1], estendendo-se às procuradorias estaduais e do DF por força do artigo 132 [2], dispositivo que também é inteiramente aplicável às procuradorias municipais [3].

 

A competência atribuída às procuradorias para inscrição em dívida ativa tem sua razão de ser na essencial função de controle da legalidade. A CDA emitida após a inscrição do crédito tem força de título executivo, o que impõe que sua formação esteja legalmente adequada, mediante o ato jurídico de controle de legalidade. Em verdade, está-se diante de atividade de autossaneamento ou autocontrole administrativo que visa preservar, além da legalidade dos atos, o direito do contribuinte de ser cobrado por título constituído de acordo com o arcabouço normativo vigente [4].

 

Assim, ao promover a inscrição, é dever da procuradoria garantir a presença dos requisitos formais e substanciais de validade do crédito, como exige a LEF (artigo 2º, § 3º), assegurando, por exemplo, a ausência de causa de suspensão de exigibilidade vigente ou de prescrição da pretensão executória.

 

*Órgão competente pelo lançamento não deve ser o mesmo pelo controle de legalidade*

Inúmeras iniciativas buscaram aperfeiçoar o controle de legalidade ao longo do tempo, a exemplo da Portaria PGFN 33/18, que, entre outros pontos, positivou a reanálise da legalidade do crédito a qualquer tempo e por iniciativa do contribuinte (PRDI). A oportunidade da reforma é única para que as procuradorias aperfeiçoem essa atividade, aprimorando padrões de governança e ampliando as hipóteses de autocontrole.

 

Espera-se que os investimentos em tecnologia, tão necessários para o sucesso da reforma, viabilizem avanços nesse sentido. Um sistema único e eficiente, por exemplo, poderá alertar os procuradores sobre o trânsito em julgado ou a modulação de efeitos de precedentes vinculantes proferidas pelo STF ou STJ [5]. Hoje, de acordo com o artigo 92, II e IV, do PLP 108, tais decisões só vinculam o tribunal administrativo após o respectivo trânsito em julgado. Também será possível realizar atualizações contínuas da situação cadastral dos contribuintes, chamando atenção para alterações societárias.

 

Sendo ato de controle de legalidade, sem dúvida cabe ao órgão jurídico incumbido de tal competência. E aqui é salutar que se observe a segmentação ou segregação de funções: o órgão competente pelo lançamento tributário não deve ser o mesmo a realizar o controle de legalidade do próprio ato.

 

Esse segundo olhar realizado pelo órgão jurídico, distante do olhar da autoridade lançadora, objetiva resguardar os contribuintes contra cobranças indevidas. Na década de 80, Geraldo Ataliba e Cleber Giardino já destacavam, ao exaltarem a importância do controle de legalidade pelas procuradorias, que “os órgãos jurídicos encarregados da inscrição da dívida não desenvolvem mera tarefa burocrática ou mecânica, mas, sim, relevantes funções técnico-jurídicas” [6]. Trata-se de passo imprescindível para a validade da cobrança e observância ao devido processo legal.

 

Assim, por um lado, deve ser saudada a opção do legislador constitucional por manter as atividades típicas de Estado sob a atribuição exclusiva das carreiras de Estado que já as exercem, preservando a capacidade de melhor decisão e adoção de caminhos atentos aos direitos fundamentais e sociais.

 

Por outro lado, é questionável a opção do texto atual do PLP 108 de que o ato de inscrição em dívida ativa siga a lei específica de cada ente (artigo 4º, §§ 4º e 5º). Isso significa que, nos estados e municípios em que as secretarias de Fazenda promovem a inscrição, a função continuará a ser por elas exercida.

 

A reforma tributária seria o momento apropriado para adequar a legislação dos entes às normas constitucionais, atribuindo às procuradorias a competência para inscrição e cobrança assegurada pela Constituição [7]. Caso não possua procuradoria, o ente poderá delegar essa função ao CG-IBS, como permite o artigo 2º, § 1º, VII, do PLP 108, necessariamente por meio de sua Diretoria de Procuradorias.

 

*Prazo para cobrança administrativa e a importância da consensualidade*

O segundo ponto diz respeito ao longo prazo previsto no PLP 108 para cobrança administrativa anteriormente à inscrição em dívida ativa (artigo 2º, § 4º).

 

Esse prazo, atualmente de 12 meses, posterga o exercício do controle de legalidade no ato de inscrição e o cancelamento de créditos contrários ao ordenamento jurídico. Ao julgar constitucional o protesto da CDA na ADI 5135, o STF ressaltou que medidas extrajudiciais de cobrança devem ser precedidas do controle de legalidade, de forma a afastar situações concretas de inconstitucionalidade ou ilegalidade.

 

O prazo de 12 meses também alonga o fluxo de cobrança de créditos válidos, aparentemente sem justificativa razoável. Quanto menor o prazo para inscrição e adoção de medidas de cobrança extrajudicial e judicial, menor o estímulo ao inadimplemento contumaz e a eventuais fraudes e, com isso, maior a proteção à isonomia e livre concorrência entre os contribuintes [8].

 

Além disso, cria-se distinção entre as regras do IBS e da CBS [9]. Na esfera federal, a RFB possui 90 dias para envio à PGFN para inscrição, nos termos da Portaria MF 447/2018. No caso de inadimplemento, portanto, a PGFN gozará de mais tempo para a adoção de medidas de cobrança extrajudicial, como o protesto da CDA. Essas medidas são, hoje, requisitos para a cobrança judicial (Tema 1.184 do STF e Res. CNJ 547/24).

 

O terceiro ponto conduz para o aprimoramento dos meios consensuais de solução de litígios, meta que hoje integra a atuação da maior parte das procuradorias fiscais. Diversos estados editaram, recentemente, leis de transação, especialmente após o Convênio ICMS 210/23. Há, ainda, iniciativas inovadoras em âmbito municipal, como a lei de transação do Município de Blumenau (Lei 8.532/2017) e a lei de mediação tributária do Município de Porto Alegre (Lei 13.028/2022), com resultados exitosos comprovados.

 

O alto índice de congestionamento dos processos judiciais no país leva à necessidade de tratamento adequado dessa alta litigiosidade. De acordo com os dados divulgados pelo Insper, chega a R$ 5 trilhões o total de dívidas tributárias em discussões judiciais e administrativas nas esferas federal, estadual e municipal no país, tomando por base o ano de 2019. O montante representa 75% do PIB brasileiro [10]. Em 2022, o CNJ ratificou tais dados ao divulgar o Relatório do Contencioso Tributário Judicial Brasileiro, salientando que o tempo médio de tramitação de um processo tributário no país é superior a 18 anos, se forem somados os tempos de tramitação dos contenciosos administrativo e judicial [11].

 

Nesse contexto de alta litigiosidade e de recursos paralisados em um país de enormes desigualdades sociais, é inegável a importância de que se projete adequadamente o funcionamento do sistema tributário. E na reforma tributária, para que efetivamente se atendam aos princípios expressos no artigo 145, § 3º, e para que o lançamento e a inscrição sejam feitos de forma correta e a permitir a adequada cobrança, é imprescindível que as funções de Estado, conforme competências legais e constitucionais, sejam observadas.

 

Cabe, portanto, às Procuradorias dos estados, DF e municípios esse olhar atento para que não se aumentem os conflitos fiscais e tributários em litígios desnecessários, especialmente em um momento em que se efetivam os métodos consensuais de forma ampla para o direito tributário – e que devem ser mantidos e preservados. Cabe aqui ressaltar a timidez das disposições do PLP 108 nesse sentido, apenas com a referência do artigo 2º, IX, quando poderia expressamente dispor sobre o incentivo às legislações já existentes e aos projetos de lei em tramitação no Senado e que tratam da reforma do processo tributário, dialogando diretamente com os meios de autocomposição de conflitos.

 

A litigiosidade desnecessária ou equivocada deve ser afastada, pois pode gerar passivos ainda maiores, que contribuem para o esgotamento das instâncias administrativa e judicial. O reflexo direto é a incapacidade de gerenciamento adequado dos processos, gerando maior custo financeiro ainda, tanto para o setor público quanto para o privado.

 

*Conclusão*

É impositivo que se confira tratamento adequado às dívidas oriundas de créditos públicos, seja na esfera administrativa, seja na judicial, não só para que o Estado tenha real capacidade de investir em políticas públicas, mas também para que os contribuintes tenham segurança jurídica e confiança no sistema.

 

A tributação se traduz em atividade garantidora da existência do Estado e a partir dela se dá a relação entre o fisco e o contribuinte na concretização de tarefas públicas. Sem tributos não há Estado, daí a importância e responsabilidade de se qualificar sempre a gestão fiscal. A capacidade de investimento de um ente da federação está diretamente relacionada à sua sanidade e capacidade financeiras.

 

É preciso promover simplificação de forma viável e atenta a todos os ditames constitucionais, com respeito às competências exclusivas. Caberá às carreiras adotar um modelo cooperativo e integrado de atuação, tanto no âmbito de cada estado, DF e município, no que se refere aos auditores e procuradores, quanto no exercício das atividades privativas que serão coordenadas pelo CG-IBS [12].

 

E o controle da legalidade, a análise jurídica da legislação e sua harmonização com a jurisprudência cabem à advocacia pública por comando constitucional e legal. A segregação de funções deve ser uma garantia no processo, cada qual com suas competências definidas em prol do interesse público envolvido.

 

O PLP nº 108/24 deve preservar essas competências, para manter adequado constitucionalmente o novo sistema tributário, com essa garantia ao poder público e ao contribuinte, que terá assegurado o cumprimento do devido processo legal. É nessa linha que o PLP nº 108/2024 precisa avançar.

 

Recentemente, muito se discutiu a respeito da divisão de competências entre as carreiras de auditores fiscais e procuradores, que compõem a administração tributária. Essas competências, que são distribuídas pela Constituição, permitem o adequado exercício das funções de constituição e cobrança do crédito tributário e, ao mesmo tempo, asseguram a proteção dos contribuintes contra eventuais arbítrios.

 

Dada sua natureza constitucional, nada mais natural que a EC 132 tenha assegurado aos procuradores e auditores de carreira o exercício de suas competências exclusivas, facultando hipóteses de delegação ou compartilhamento, a serem coordenadas pelo CG-IBS “com vistas à integração entre os entes federativos” (artigo 156-B, V e VI). Essa coordenação, é claro, não admite a retenção ou o desvirtuamento de tais competências.

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