Um dos desafios do Poder Judiciário em quaisquer dos países consiste em promover o acesso da população, com qualidade de informação, aos processos em que se discutem interesses individuais e sobretudo coletivos. Esse é um dos objetivos da própria publicidade das audiências, julgamentos e da maioria dos atos e processos judiciais, com as poucas exceções daqueles casos submetidos ao sigilo, por envolver questões de interesse social e típicas da intimidade quando a natureza do seu conteúdo assim o exigir, nos termos do artigo 5º, LX, da Constituição de 1988.
É preciso destacar que, mesmo nessas hipóteses, o sigilo é estabelecido conforme o regramento previsto em lei em sentido estrito, para evitar ou atenuar qualquer discricionariedade presente em regimes menos democráticos. Todavia, é prudente ponderar que a mera publicidade dos atos processuais não garante a justiça das decisões, ainda que permita uma maior fiscalização da sociedade acerca dos critérios utilizados em eventual julgamento.
Em relação ao aspecto da publicidade, é possível inferir que a transmissão ao vivo das sessões do Supremo Tribunal Federal, por exemplo, permitiu que milhões de pessoas pudessem acompanhar, em tempo real, a solução de lides que impactam a sociedade, dada a existência de certa repercussão geral sob os aspectos sociais, jurídicos, econômicos e políticos, influenciando a vida de grande parte dos brasileiros senão em sua totalidade.
A publicidade dos julgamentos é potencializada pela viabilização de uma plena informação e, consequente, divulgação dos direitos insculpidos em nosso ordenamento jurídico, não só para o povo brasileiro, mas também aos estrangeiros residentes ou de passagem pelo território nacional.
O conhecimento sobre a existência de direitos é o primeiro passo para que eles possam ser exercitados, contudo, sempre deve ser elucidado na informação disponibilizada quais os instrumentos ou garantias para a prevenção e a repressão às ofensas a esses direitos caso desrespeitados ou menoscabados de forma desproporcional, desarrazoada e ilegítima por quem quer que seja, pessoa física, jurídica ou ente despersonalizado [1].
Na realidade, o acesso ao Poder Judiciário pressupõe inúmeras outras questões que merecem ser devidamente atendidas, dentre elas, a plena ciência sobre os direitos consagrados nas normas constitucionais e infraconstitucionais. O conceito enunciativo de informação é o mais amplo possível e abarca também a prerrogativa de influir no julgamento por meio do contraditório e da ampla defesa, propiciando o debate e o detalhamento das teses jurídicas discutidas no processo.
Todos os estudantes do curso de graduação em Direito reconhecem os institutos processuais, como o depoimento pessoal, o interrogatório e a própria colheita da prova testemunhal. É relevante frisar aqui que, muito além, da singela declaração das partes ou das diversas testemunhas [2] que reverenciam o direito a ser ouvido em juízo, há a necessidade de uma compreensão muito maior, abarcando não só o direito de ser ouvido, mas também o de ser amplamente compreendido [3] em suas inquietudes, aspirações e concepções em prol de uma decisão mais justa e equânime que proporcione um maior potencial de pacificação social.
Com base na ampliação dos elementos probatórios e técnicos absorvidos pelos depoimentos, testemunhos e esclarecimentos de peritos, o órgão julgador poderá apresentar uma decisão com maior profundidade de delimitação e cognição sobre a matéria submetida a julgamento. Nesse contexto, surge em caráter complementar e vocacionado a proporcionar uma ampliação do contraditório em uma concepção mais democrática e plúrima, a figura do amicus curiae.
Na ADPF 54, julgada pelo Tribunal Pleno, em 12/04/2012, consignou-se a importância do amicus curiae, anos antes do CPC de 2015, mais precisamente nas ações de controle de constitucionalidade, devido a possibilidade de ampliar o debate e a maior percepção de diversos aspectos da mesma realidade social, ressaltando sua relevância, por exemplo, no mapeamento de outras visões religiosas sobre questões éticas e morais:
"Nos temas de aprofundado conteúdo moral e ético, é importante, se não indispensável, escutar a manifestação de cristãos, judeus, muçulmanos, ateus ou de qualquer outro segmento religioso, não só por meio das audiências públicas, quanto por meio do instituto do amicus curiae."
Na atualidade, com a vigência do CPC de 2015, o caput, do artigo 138, do diploma processual, elasteceu as possibilidades de participação do amicus curiae, preconizando que:
"O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 dias de sua intimação."
Observa-se a preocupação do legislador infraconstitucional em estender para todos os processos de caráter individual ou coletivo a possibilidade de participação do amicus curiae sempre que presente uma relevância justificadora, medida pelo conteúdo da matéria abordada na demanda, uma especificidade da questão que exija um conhecimento mais aprofundado e/ou peculiar sobre o assunto ou, ainda, a repercussão na sociedade da solução do conflito submetido à apreciação judicial. Anteriormente, a previsão restrita a algumas normas especiais, além das ações decorrentes do controle concentrado de constitucionalidade, já era benéfica, mas o aperfeiçoamento do instituto era algo inerente à própria evolução das relações sociais e dos conflitos decorrentes.
Assim, o elemento mais importante do instituto é a maior legitimação democrática das decisões judiciais proferidas e, por isso, a representatividade adequada mencionada no diploma processual deve ser compreendida como a possibilidade de contribuir para a solução da controvérsia com elementos, percepções, visões, circunstâncias e demais questões que possam passar despercebidas pelo órgão julgador, mas são essenciais para a solução mais adequada da questão em debate.
Aliás, esse é o entendimento exarado na ADI 5.086, julgada pelo STF, em 18/5/2018, em que se indeferiu o pedido de intervenção do amicus curiae, sendo exigível uma "aderência específica" acerca da matéria objeto do julgamento, o que deve ser ponderado pelos magistrados segundo critérios de conveniência e oportunidade, para não atrasar a marcha processual desnecessariamente ao se exigir uma real e efetiva "aptidão contributiva" a título de representatividade adequada sobre o tema em contraditório, como ressaltado na ADI 6.767 ED, julgada pelo Tribunal Pleno, em 27/04/2022.
Apesar do óbice cunhado na jurisprudência do STF, no sentido de que os embargos de declaração, no âmbito das ações de controle concentrado de constitucionalidade, não podem ser apresentados pelos amicus curiae, como enunciando na ADI 5.404 ED, julgada pelo Tribunal Pleno, em 22/5/2023, com maior razão deveria ser permitida a interposição para o saneamento de omissão, obscuridade e contradição sobre elemento relevante e crucial para o aperfeiçoamento da tese jurídica final declarada, de forma a proporcionar uma fiel compreensão da matéria em tese, e não para a solução do caso concreto em si, especialmente diante do efeito vinculante de tais pronunciamentos pelo STF e da redação contemporânea do artigo 138, do CPC, de 2015.
Esse dispositivo do código de processo civil se aplica às demais ações individuais e coletivas não submetidas a normas específicas, mas deve influenciar todas as ações, incluindo as regidas por normas extravagantes, sendo evidente que, em teoria, as decisões no controle concentrado são abstratas e mais abrangentes que os processos que apreciam apenas uma situação fática concreta (demandas individuais ou coletivas), da mesma forma que os proferidos pela sistemática dos recursos repetitivos ou da repercussão geral julgada no mérito, que, além do caso concreto, abarcam a definição de teses vinculantes.
A edição, a revisão e o cancelamento de enunciado de súmula vinculante devido aos mesmos motivos deveriam ser objeto de embargos de declaração para eventual esclarecimento em prol da maior eficácia social e de sua plena aplicabilidade.
Outro ponto de extrema relevância encontra-se na imparcialidade associada à figura do amicus curiae, no sentido de que não é parte no processo mas mero terceiro, contudo, esse distanciamento se relativizou no âmbito da doutrina e da jurisprudência, na medida em que a representatividade adequada pode exigir não só conhecimento de causa sobre o assunto debatido, mas pressupor, em certas situações, interação com os elementos fáticos e jurídicos debatidos, o que gera além de um certo nível de interesse no resultado, a exigência da presença desse interesse ao menos para legitimar o conhecimento mais aprofundado dessas questões, suas perspectivas e reflexos que poderão contribuir com o julgamento.
Nesse contexto, o papel das associações de representação de classe é de fundamental importância para os esclarecimentos e a ampliação do contraditório no intuito de aperfeiçoar a compreensão acerca das circunstâncias e reflexos de uma decisão de caráter abstrato em um determinado segmento da sociedade. É bem mais inteligente, eficiente e menos custoso para um órgão julgador antecipar os impactos positivos e negativos de uma decisão judicial vinculante por meio de audiências públicas e de elementos colacionados pelos amicus curiae, ponderando os seus reflexos com o sopesamento dos diversos direitos envolvidos do que, posteriormente, após anos de consequências indesejadas, revisar a tese anteriormente consolidada.
Na ADI 2.321 MC, julgada pelo Tribunal Pleno, em 25/10/2000, o Pretório Excelso já propugnava os benefícios da participação do amicus curiae no controle concentrado de constitucionalidade, com o resultado de proporcionar maior legitimidade democrática aos julgamentos, considerando que:
"A ideia nuclear que anima os propósitos teleológicos que motivaram a formulação da norma legal em causa, viabilizadora da intervenção do 'amicus curiae' no processo de fiscalização normativa abstrata, tem por objetivo essencial pluralizar o debate constitucional, permitindo, desse modo, que o Supremo Tribunal Federal venha a dispor de todos os elementos informativos possíveis e necessários à resolução da controvérsia, visando-se, ainda, com tal abertura procedimental, superar a grave questão pertinente à legitimidade democrática das decisões emanadas desta Suprema Corte, quando no desempenho de seu extraordinário poder de efetuar, em abstrato, o controle concentrado de constitucionalidade."
Essa propensão do Pretório Excelso em reconhecer suas limitações para alcançar uma cognição exauriente e perfeita sobre as matérias relevantes que julga é digno de deferência e, com a edição do CPC de 2015, uma exigência para todo o Poder Judiciário.
Em sua origem, o amicus curiae era reputado um colaborador imparcial e neutro, proporcionando esclarecimentos de fato e de direito, mas, como é natural, a sociedade não comporta, dentre seus atores, imparcialidade absoluta, motivo pelo qual se passou a admitir certo interesse, mas não o suficiente para o transformar em parte, apenas o razoável para legitimar a sua representatividade adequada.
Há ainda uma preocupação salutar na jurisprudência do Supremo com a aceitação ou convite dos colaboradores que possam agregar informações novas em perspectivas variadas, sem duplicidade e eventuais prejuízos à duração razoável do processo. Esse entendimento evoluiu não só no Brasil como no direito comparado, sobretudo nos Estados Unidos, sendo objeto de destaque no RE 602.584 AgR, julgado pelo Tribunal Pleno, em 17/10/2018.
Assim, o amicus curiae tornou-se um dos instrumentos de legitimação democrática dos julgamentos pelos órgãos do Poder Judiciário, motivo pelo qual deve ser estimulado em todos os graus de jurisdição e para todas as ações em que estejam presentes "a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia", prevista no artigo 138, do CPC, de 2015, sem qualquer distinção.
Por Luiz Henrique Sormani Barbugiani e Vicente Martins Prata Braga
[1] Sobre a possibilidade de grupos ou entes despersonalizados serem representados em juízo ativa e passivamente (autor e réu) recomenda-se a leitura de Barbugiani, Luiz Henrique Sormani. Ações Coletivas Passivas. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019.
[2] Os diversos elementos que interferem na declaração de uma testemunha podem ser melhor apreciados na obra Barbugiani, Luiz Henrique Sormani. A Colheita da Prova Testemunhal no Brasil: uma visão antropológica. Rio de Janeiro: Lumen, Juris, 2019.
[3] Sobre o direito de ser não só ouvido, mas também compreendido ver Barbugiani, Luiz Henrique Sormani. A interpretação ampla do direito a ser ouvido como conceito jurídico indeterminado no brasil em conformidade com a convenção americana sobre direitos humanos. In. Comentários à convenção americana sobre direitos humanos. Org. João Otávio de Noronha Paulo Pinto de Albuquerque. São Paulo. Tirant Lo BLanch, 2020.