O advogado público na era da consensualidade


Fabrizio de Lima Pieroni


Presidente da Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo


A sociedade contemporânea é caracterizada pela elevada conflituosidade e também pela judicialização do cotidiano, que transfere para as mãos do Poder Judiciário a responsabilidade de dirimir toda sorte de questões, inclusive as mais simples, de nenhuma complexidade ou relevância.


Sendo o conflito inerente à condição humana, mais importante que discutir a sua existência é a escolha dos instrumentos para sua resolução. O processo judicial e adversarial, apesar de possuir evidente cunho técnico, traduz uma escolha político-cultural, sendo apenas uma das inúmeras formas de resolver uma controvérsia.


Nas últimas décadas, o País vem investindo massivamente no agigantamento do Poder Judiciário, na contratação de juízes, servidores, no investimento em novos edifícios, softwares e na mudança da legislação, com o intuito de tornar o processo mais célere, muitas vezes em contraposição às garantias processuais. Trata-se de uma estratégia que vem se mostrando ineficiente, pois não enfrenta o cerne do problema, que é a cultura demandista da sociedade e dos operadores do Direito, em especial da Administração Pública, cujos entes são os maiores litigantes do País.


Qualquer estudo a respeito da litigiosidade excessiva e da morosidade que assola o Poder Judiciário não pode deixar de analisar o papel desempenhado pela Fazenda Pública, grande geradora de conflitos, verdadeiro repeat player da Justiça brasileira.


Há uma judicialização excessiva e desnecessária das lides envolvendo o Poder Público. A inexistência de uma cultura administrativa de solução interna dos litígios faz com que boa parte deles seja repassada ao Judiciário como instância decisória, contribuindo para uma Administração menos eficiente, que não conhece seus litígios e que não se esforça para resolvê-los. E, uma vez em juízo, o Estado, com raras exceções que apenas confirmam a regra, adota uma postura de intransigência e se nega a exercitar o consenso, muitas vezes sustentando o insustentável, contestando o incontestável e recorrendo até o limite, na busca pela reversão de qualquer decisão contrária aos seus interesses.


A mudança dessa realidade passa pelo reconhecimento do acesso à Justiça como um sistema de pacificação social e pela afirmação de uma Administração Pública consensual ou concertada.


Mesmo em um País como o Brasil que adota a jurisdição una, não se poder oferecer aos litigantes apenas a via estatal.  Há inúmeros conflitos cuja resposta é mais adequada mediante o uso de outras ferramentas, como a mediação, a conciliação e a arbitragem. A tutela jurisdicional tradicional não é a única capaz de conduzir a uma ordem jurídica justa, havendo uma equivalência teleológica entre todas as vias de tratamento de controvérsias. Apoiado na ideia de pacificação social, o uso de diferentes instrumentos deve ser incentivado, com adequação de cada técnica à dimensão e especificidade do litígio, tal como pensado no Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015).


Já o Estado Democrático de Direito exige da Administração Pública uma nova adequação e um novo paradigma do agir administrativo, tudo para resguardar a participação direta dos administrados, verdadeiros titulares do poder, na gestão da coisa pública. Isso reflete em uma nova visão do Poder Público em relação ao administrado, exercendo papel de destaque a participação democrática na formação e na execução da decisão administrativa, com ampla abertura à construção de uma cultura de consensualidade administrativa.


A concepção autoritária e burocrática, forjada no Século XIX, não mais subsiste e no Estado Democrático, que considera o indivíduo em situação de paridade, em condições de dialogar e participar da gestão pública, não há espaço para uma Administração Pública autoritária e unilateral, que deve ser substituída por um modelo consensual, pautado na participação do cidadão e no acordo de vontades, no âmbito administrativo ou judicial.


A este novo modo de agir administrativo, legitimado democraticamente, dá-se o nome de Administração Pública consensual ou concertada. Trata-se de um processo que desconstrói velhos paradigmas administrativos e, com base na consensualidade do Poder Público, substitui pela concertação a antiga relação imperativa e de imposição existente entre o Estado e a sociedade.


Neste diapasão, destaca-se o papel da Advocacia Pública, consolidada pela Constituição de 1988 como função essencial à Justiça e posicionada institucionalmente fora dos três Poderes da República, ao lado do Ministério Público, da Defensoria Pública e da Advocacia privada.


Tais entidades, embora não tipificadas como autênticos poderes estatais, são disciplinadas constitucionalmente como indispensáveis para o cumprimento da finalidade precípua da função jurisdicional de pacificação social por meio da solução de litígios, com a utilização de procedimentos e critérios legalmente estabelecidos. Estão, pois, inseridas no movimento de consensualidade que hoje ganha o País.


No caso da Advocacia Pública, sua importância sobressai-se, devendo assumir o advogado público uma atuação voltada à consensualidade. Atuando na consultoria jurídica e no contencioso judicial, com capilaridade em todos os ministérios, secretarias e órgãos estatais, tem melhor capacidade de identificar as razões dos litígios envolvendo órgãos e entidades públicas e de agir na sua resolução consensual, além de atuar preventivamente, avaliando situações com potencialidade conflitiva.


A compreensão do papel constitucional do advogado público é primordial para pôr fim à cultura da sentença que hoje vigora na Administração Pública, com ganhos para uma rápida resposta às lides, por meio da consensualização da função administrativa e da utilização de outros instrumentos, como a dispensa de propositura de ações judiciais, a publicação de súmulas administrativas, o reconhecimento do pedido, a desistência e não interposição de recursos.


Não é contestando o incontestável e recorrendo quando irrecorrível que haverá eficiente tutela do interesse público. Esta forma de promoção da defesa em juízo apenas posterga a solução do litígio, contribui para a crise do Judiciário com demandas que não deveriam existir e desrespeita o cidadão, que acaba sofrendo duas vezes: a primeira com a ilegalidade cometida pelo Poder Público e, depois, com a morosidade judicial. Deve atuar preventivamente e espontaneamente, a partir da identificação de condutas ilegais nos processos judiciais, o que significa, a um só tempo, concretizar o atendimento da juridicidade, da eficiência e da economicidade.


É exigida da Advocacia Pública um novo atuar. A utilização dos diferentes instrumentos de pacificação social se impõe como consequência natural de defesa proativa, comprometida com a resposta das lides e protagonista na política pública de tratamento adequado dos conflitos, instituída pela Resolução nº 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça, pelo CPC/2015 e pela Lei de Mediação (Lei nº 13.140/2015).


Fonte: Revista Justiça & Cidadania 

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