Essencialidade no ICMS e a tese fixada pelo STF para o Tema 745

 

A revista Justiça & Cidadania publicou artigo de autoria do procurador pelo Estado de Santa Catarina, João Paulo de Souza Carneiro. Leia a íntegra abaixo:

 

  A Constituição brasileira dedica um generoso espaço para a configuração do Sistema Tributário Nacional, relacionando seus princípios gerais, impondo limitações ao poder de tributar, listando os impostos da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios e desenhando até mesmo a repartição das receitas tributárias. Dentre os dispositivos da Lei Maior que traçam a compostura dos impostos, destaca-se o art. 155, que trata do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). No inciso III de seu parágrafo 2º, o referido artigo dispõe que o ICMS “poderá ser seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços”. O que isso quer dizer?

O Supremo Tribunal Federal (STF), ao apreciar em 18/12/2021 o Recurso Extraordinário 714.139/SC, forneceu alguns indicativos de sua compreensão acerca do significado do art. 155, § 2º, III, da Constituição, abordando o alcance da aplicação do princípio da seletividade no âmbito do ICMS, assunto identificado como “Tema nº 745”. No julgamento do Recurso Extraordinário, fixou-se tese segundo a qual, uma vez adotada pelo legislador estadual a técnica da seletividade em relação ao ICMS, as alíquotas incidentes sobre as operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação não poderiam ser superiores à alíquota aplicável às operações em geral, considerada a essencialidade de tais bens e serviços. Ou seja: se, em determinado estado, a alíquota ordinária (ou modal) de ICMS é de 17%, as operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação devem ser tributados com uma alíquota igual ou inferior, mas jamais com uma alíquota superior, haja vista que se tratam de bens e serviços essenciais. Em suma: o que é essencial não pode sofrer uma tributação mais intensa do que aquela ordinariamente praticada.

Apesar de o entendimento fixado pelo STF restringir-se às operações com energia elétrica e serviços de telecomunicação, os argumentos utilizados pelos ministros em seus votos indicam a possibilidade de elastecimento do rol de mercadorias e serviços considerados essenciais para fins de tributação pelo ICMS. No voto do Ministro Marco Aurélio, por exemplo, considera-se que a essencialidade da energia elétrica e das telecomunicações revela-se no fato de estarem presentes na grande maioria dos lares brasileiros. No mesmo sentido, o Ministro Gilmar Mendes consignou em seu voto que os serviços de telecomunicação integram a cesta básica de mercadorias e serviços essenciais dos cidadãos, constituindo mecanismo de inclusão social. Por fim, o Ministro Dias Toffoli considerou que a popularização dos serviços de telecomunicação tornou inconstitucional a incidência sobre eles de alíquotas superiores à comum, de forma que haveria uma correspondência entre popularização e essencialidade: assim, se antes a Internet móvel não se enquadrava como serviço essencial, por ser de acesso restrito, passou a ser qualificada como tal no momento em que teve seu acesso franqueado às camadas menos favorecidas da população.

Como se pode perceber, na formulação da tese fixada para o Tema nº 745 o Supremo Tribunal Federal traçou uma relação entre o caráter comum dos bens e serviços e sua classificação como essenciais para fins de ICMS. Ora, valer-se da disseminação do uso de um bem ou serviço como parâmetro para aferir a sua essencialidade pode levar a resultados destoantes daquele esperável pelo senso comum.

Quando se fala em essencialidade, vem à mente a ideia de algo que é fundamental, básico, necessário. Nesse sentido, é defensável que os serviços de energia elétrica e de telecomunicação sejam reputados como essenciais, pois, em princípio, viabilizam uma vida integrada à sociedade atual: basta pensar que a energia elétrica é necessária para a refrigeração, forma por excelência de conservação de alimentos, e que o serviço de telecomunicação viabiliza a conexão à Internet, que vem, crescentemente, afirmando-se como pré-requisito para o exercício de direitos, como a movimentação de quantias distribuídas por programas sociais e até mesmo o acesso a documentos disponíveis tão somente na forma digital. No entanto, o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o Recurso Extraordinário 714.139/SC, não desenvolveu uma argumentação que se aprofundasse nessa acepção da essencialidade: o Ministro Marco Aurélio relaciona a essencialidade da energia elétrica ao fato de estar presente em 99,8% das residências e a essencialidade das telecomunicações ao fato de ser acessível a 98,2% da população brasileira, argumentação esta que, em linhas gerais, foi compartilhada por seus pares.

O raciocínio que vincula essencialidade de bem ou serviço à sua acessibilidade, disponibilidade ou até mesmo popularidade pode levar à reavaliação da ideia de bens supérfluos. Exemplo: no Estado de Santa Catarina, cervejas, perfumes e cosméticos são considerados bens supérfluos, sendo as operações mercantis a eles correspondentes gravados com a alíquota de ICMS de 25%. Pois bem: se a essencialidade vincula-se ao nível de difusão do consumo de bens e serviços pela população, não é desarrazoado considerar a cerveja, os perfumes e os cosméticos como mercadorias essenciais, partindo-se do pressuposto de que a g rande maioria da população as adquire com frequência. O mesmo pode-se dizer de outros bens classificados como supérfluos por leis tributárias, mas utilizados por todas as classes sociais, como fogos de artifício, jogos eletrônicos e cartas de baralho.

É certo que se pode introduzir um fator moderador, de maneira a exigir que a essencialidade esteja associada a um imperativo de ordem moral, além da “popularidade” do bem ou serviço. O voto do Ministro Alexandre de Moraes no julgamento do Recurso Extraordinário 714.139/SC vai nessa direção, ao reconhecer a possibilidade do legislador estadual, ao estabelecer alíquotas seletivas ao ICMS, buscar incentivar certas condutas, estimulando ou desestimulando o consumo de determinados bens. Isso é possível, mas leva ao seguinte problema: presumindo-se que somente operações lícitas são tributadas pelo ICMS, com base em qual teoria moral seriam eleitas as condutas a serem estimuladas e as condutas a serem desestimuladas? O uso de perfumes e cosméticos, embora disseminado, deve ser desincentivado para combater a “vaidade”? O consumo da cerveja deve ser inibido em prol da sobriedade? Uma alíquota alta de ICMS sobre o comércio de cartas de baralho poria fim aos malefícios da jogatina?

A regra da seletividade do ICMS em função da essencialidade das mercadorias e serviços, presente no art. 155 da Constituição, pode ser vista como uma norma com o potencial de racionalizar a tributação, tornando-a mais justa ao evitar que se instituam alíquotas altas de ICMS sobre bens e serviços básicos, funcionando como uma salvaguarda às parcelas mais necessitadas da população. Ou pode ser apenas uma norma vazia de conteúdo, à procura de uma ideia que a preencha e sujeita a se transformar em instrumento de demagogia legislativa ou judicial. A seriedade ou a leviandade com que o seu sentido for desenvolvido ao longo do tempo determinará o que essa regra realmente é.

 

 

Fonte: Justiça & Cidadania

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