Liberdade de Imprensa: dos Panfletos à Guetificação, onde ficam as liberdades comunicacionais?

No modelo do direito internacional dos direitos humanos, o fundamento do direito à liberdade de expressão é a própria democracia, decorrendo daí a possibilidade de o Estado atuar positivamente, seja alocando recursos para o seu exercício ou restringindo quando houver exercício ilegítimo e atentatório aos valores democráticos. Da outra margem, o modelo americano é expressão do liberalismo clássico, no qual a liberdade de expressão é uma liberdade negativa, direito de eficácia vertical. Nesse sentir, diferença entre os modelos de liberdade de expressão de cada país depende da apropriação valorativa que se dá as liberdades comunicacionais, além do tipo da democracia e cidadania merecidamente construídas, e se revela com muita visibilidade, por exemplo, quando o direito norte americano, ao considerar a liberdade de expressão como valor absoluto, engloba a proteção até mesmo do hate speech . Por outra via, o modelo internacional dos direitos humanos considera o discurso de ódio, ilegítima prática da liberdade de expressão. O Supremo Tribunal Federal consagra a liberdade de expressão como um direito relativo e de eficácia horizontal, justificado, primordialmente, na democracia e devendo deferência ao Estado Democrático de Direito , circunstancialmente limitado, quando contrariar valores democráticos estabelecidos na Constituição.

A liberdade de expressão, no Brasil, erige-se no processo histórico, político, de construção e ressignificação e, por este motivo mais se aproxima do modelo internacional de direitos humanos. Tome-se como exemplo a prática panfletária no processo de construção do nosso regime político. As pessoas tomavam conhecimento das novidades políticas ouvindo as leituras em voz alta e participando das conversas em praças públicas, prática comunicacional que atingia da elite letrada ao povo, pelo “falar de boca”. Os panfletos eram pregados em postes ou muros e ainda publicados em pequenas brochuras, similar ao que hoje é o WhatsApp.
No período militar brasileiro vigia a “Lei de Imprensa” (5.250/1967) regulando e ‘amordaçando’ a atividade de imprensa nacional, aliás, como sói acontecer em períodos de governos despóticos que surgem, mesmo na contemporaneidade. Somente após o julgamento memorável do STF, da ADPF 130, ocorrido no ano de 2009, tendo passado mais de uma década de vigência da Constituição Cidadã, aquele diploma legal ganhou o timbre de não recepção pela ordem constitucional vigente.
Impende observar, a esse propósito, que a cultura legatária dos tempos do império e depois, do período ditatorial ‘normalizou’ a censura prévia, no âmago da sociedade civil ou das instituições, de modo a evitar ou minimizar imprensa nacional, reduzindo aquele mais precioso direito do homem dito na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, o direito à livre comunicação das ideias, sem arroubos despóticos do Estado. Nesse sentido lembra Bucci “....não espanta, portanto, que desde 1808 o Brasil confunda jornalismo com informação oficial, com assessoria de imprensa e com discurso governista. Não é por acaso.”
Muito se evoluiu na firme garantia dos sobredireitos. Do passado ao presente, observamos como aqueles nascidos no período da ditadura e os que a vivenciaram puderam e podem ser mais ou menos complacentes com a ideia de censura; evidenciamos pelo arruar da história a forma pela qual a ‘autoridade’ dos governos podem vestir a censura com trajes de legalidade e impor uma ordem nacional à infeliz mordaça, especialmente em tempos de escassez e de caos social. Por toda a construção das liberdades comunicacionais no texto constitucional, não é demais desejar que o Estado Democrático de Direito deva garantir uma imprensa livre e independente das questiúnculas governistas e aos cidadãos a informação jornalística isenta e apartidária.
Para tanto, a liberdade de imprensa compõe o acervo das liberdades de expressão latu senso, nomenclatura adotada por Canotilho , contudo é dotada de traços distintivos da liberdade de expressão, na medida em que a liberdade de imprensa prescinde de um meio para exercício desta liberdade comunicativa, bem como de um público ao qual se direciona. Já a liberdade de expressão, bastando-se em si mesma, não necessita de meio ou público, como assegura o professor Venício Lima ao dizer que a “liberdade de expressão nasce com o indivíduo e a liberdade de imprensa implica na disponibilidade de material impresso - tecnologia/máquina, papel- mas... a existência de um público leitor
Considerando a liberdade de imprensa como instrumental, talvez menos ampla que a liberdade de expressão, mas em conformação com o interesse público ficamos com a posição de Judith Lichtenberg citada por João Henrique Bonillo , para que não se confundam as liberdades equivalentes:


“Toqueville e Leibling, no entanto, consideram liberdade de imprensa em sociedades democráticas como se fosse um dogma que praticamente não pode ser desafiado – essencial para autonomia e auto expressão e um elemento indispensável para a democracia e para que se alcance a verdade. Tanto os eloquentes teóricos quanto os seus defensores contemporâneos defendem que a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa estão na mesma categoria, implicando que elas são inseparáveis, provavelmente equivalentes e igualmente fundamentais.”


A partir da difusão das redes, e mais precisamente do surgimento de grupos de indivíduos insulados, que compartilham as suas ideias, vontades e verdades, presos em “guetos comunicacionais” todos esses conceitos de liberdades devem fazer sentido na fluida sociedade contemporânea. Os indivíduos na sociedade guetificada parecem não prescindir, ou mesmo não desejam confrontar suas opiniões com outras diferentes. Falam do mesmo assunto, leem e veem as mesmas notícias seguindo as suas próprias crenças, portanto possuem um mesmo ponto de vista e uma mesma opinião. Convém lembrar a máxima de Mill acerca da importância da liberdade irrestrita de opinião, essencial para enfrentamento com as opiniões contrárias. Para tanto, é importante que o indivíduo esteja disponível para receber opiniões contrárias e expor as suas. Assim, a liberdade de imprensa, agraciada dentre as liberdades comunicacionais, ungida pelo condão do sobredireito, deve ser analisada, também e, sobretudo, sob o prisma dos novos fenômenos sociais, a partir vontade individual do sujeito comunicacional, da sua escolha individual de “se guetificar” ou, contrariamente, de expandir-se no exercício democrático das liberdades comunicacionais.



Por Cristiane Guimarães
Diretora de Direitos Humanos da ANAPE

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