A edição 249 da Revista Justiça & Cidadania traz artigo exclusivo da segunda Vice-Presidente da ANAPE, Cristiane Guimarães, sobre a Reforma Administrativa que está em discussão neste momento no Congresso Nacional. Confira abaixo a íntegra ou acesse aqui:
Toda reforma administrativa é fruto de processo histórico com dimensões proporcionais às crises. Aquela dos anos 1980, muito crítica às formas de intervenção ou regulação do Estado, deixou o legado do realismo para os anos 1990, de que se deveria abandonar a ideia conservadora do Estado mínimo para a necessidade de reconstrução.
A reforma do Estado dos anos 1990 envolvia quatro problemas, dois político-econômicos (a delimitação do Estado e a redefinição do papel do Estado-Regulador), um econômico-administrativo (a recuperação da governança) e, afinal, um político (o aumento da governabilidade).
As ideias de privatização, terceirização e a intervenção econômica do Estado no mercado estão nos dois primeiros problemas. A superação de crise fiscal, as formas de intervenção no plano econômico-social e a superação da burocracia administrativa do Estado, incluem-se no terceiro problema. Já a legitimidade do governo perante a sociedade e, especialmente, a intermediação dos interesses, adequadamente, pelas instituições políticas, têm morada no quarto problema.
Esses problemas foram mapeados pela equipe econômica da reforma administrativa de 1990 e de lá para cá, após 32 anos, a antever o caos advindo dos ares da nova reforma administrativa, o pressuposto do regime democrático deixou de ser o valor final.
Mas que modo de fazer reforma é este que se inaugura, pois não cuidou de identificar os reais problemas? Ao invés disso, buscou implodir a lógica dos mecanismos de controle da tríade – Estado, mercado e sociedade civil. Em especial, deseja-se com a dita “nova administração pública” dar fim ao sistema de controles do Estado, ao sistema de controle jurídico, constituído por normas gerais que estabelecem os princípios básicos para os demais mecanismos.
Pois bem, aqui se trata da deliberada intenção política de desfazer o marco natural do constituinte de 1988, que outrora desafiou o establishment e esculpiu a Constituição Cidadã esteada no Estado Democrático Social de Direito. É contra isto que se direciona a referida proposta de emenda constitucional (PEC), volta-se ao desmonte da administração pública, incidindo, especialmente, sobre seu leque de controles, ao invés de apurar a visão e conter o patrimonialismo e o aparelhamento de poder, tomando-se como exemplo, a novidade dos contratos de gestão com a transferência da execução de serviços públicos para entes subnacionais e entidades privadas.
Se o Estado é fundamental para promover o desenvolvimento e a justiça social e não somente o garantidor da propriedade ou da ordem, se o modelo do Estado social-liberal do Século XXI, encartado na Constituição, não serve mais à contemporaneidade e, supostamente, necessita de mudanças, que sejam apontados, aprioristicamente, os problemas.
Exatamente no que atine ao terceiro problema identificado na anterior reforma é que reside um dos maiores empecimentos da que brevemente está por vir – a ausência de legitimidade do governo perante a sociedade. Os primeiros desenhos e as pinceladas rarefeitas já contornam a obra da seguinte forma: as representações políticas do povo no parlamento estão enfraquecidas por interesses e jogos políticos motivados pelo rent seeking, combinados com a vontade de reeleição e o provável esfacelamento do corpo administrativo, antes composto da alta burocracia técnica e capaz, esvaziada, agora, com a proposta de eliminação do concurso, da estabilidade e fim do regime jurídico único, levando ao insucesso a governança, exatamente como mal alumia os termos da reforma proposta.
Mas então chegamos à dimensão política da reforma administrativa, esta que não poderia ter sido deixada de lado em nenhuma das recentes PECs, pois não estamos verdadeiramente diante de uma crise de Estado a ensejar a reforma administrativa que se apresenta, contudo estamos a encarar uma crise política, sendo esta sinônimo de crise de governabilidade.
Isto porque, o governante não é responsável pelo seu mandato apenas, mas também o é, perante sua consciência, e por isso, uma condição essencial da governabilidade é a responsividade com o eleitorado. Na perda de legitimidade perante a sociedade e na inadequação das instituições para o exercício do poder político, hoje impera o Fi-lo porque qui-lo! Ato de autoridade política dos mais desnudados das virtudes aristotélicas, que sequer teria o beneplácito da ignorância a absolvê-lo.
Seguimos com Bobbio, “Um representante sendo chamado a perseguir os interesses da nação, não pode estar sujeito a um mandato imperativo”.
Assim é de se questionar: uma reforma administrativa é necessária hoje? Qual reforma administrativa precisamos? Se o Estado serve para prestar segurança pública e prestar serviço público, uma reforma pode pretender trazer “piorias”, investir contra os mecanismos de segurança dessa prestação, a exemplo da estabilidade? Uma reforma pode abrir caminho fértil para eventuais abusos e atos de corrupção? Esta proposta segue em ataque frontal à sociedade brasileira, pois o que se espera do serviço público é este que seja realizado com eficiência por pessoas compromissadas com a coisa pública, independentemente do matiz ideológico do governo da vez. Por onde anda a razão da PEC 32? No achismo e afã politiqueiro dos Chicago Boys brasileiros?
Se uma reforma administrativa está imbricada à dimensão do problema que se deseja reduzir, não é através do discurso de redução do Estado, do desmonte do texto constitucional relativo ao serviço público nacional; não é abrindo deliberadamente folgas no que a Constituição petrificou, sob o argumento falacioso de redução de gastos, mas se voltando ao cerne do problema nacional, a sua crise de governabilidade.
Precisamos de melhoras na efetividade da prestação do serviço público, é fato. É preciso remodelar o serviço público, porque ele está para servir à sociedade, ora global, digital, dinâmica, contudo preservando a universalidade, impessoalidade e, sobretudo, profissionalizando-o. Não em deliberada chacina de seus princípios básicos como o lança chamas da bestial Quimera. A trajetória da PEC 32 é nesse sentir, completamente motivada por projeto de governo que ao impermanente pretexto de redução de gastos, cuidará mais uma vez de desconstruir o Estado, pois, a exemplo de tempos caóticos de outrora Fi-lo, porque qui-lo!