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O destino das outorgas no saneamento e o desafio da universalização

Luciana Merçon Vieira

Procuradora do Estado do Espírito Santo

Mestre em Direito Público pela FGV-SP

 

Desde 2020, as concessões regionalizadas de saneamento vêm levantando cifras expressivas em todo o país. Estados como Rio de Janeiro, Alagoas, Amapá, Sergipe, Piauí e Pará já concluíram seus leilões, revelando forte apetite do setor privado por esse mercado. De acordo com dados da ABCON SINDCON (Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto), o conjunto dessas operações representa outorgas fixas que ultrapassam R$ 57 bilhões, o que confirma o aquecimento do setor e a confiança dos investidores na agenda de universalização. 

Entretanto, grande parte desses recursos não está vinculada ao reinvestimento direto nos sistemas de saneamento, revelando a necessidade de aprimorar os mecanismos de destinação e controle das receitas de outorga, de modo a garantir que revertam efetivamente em melhorias para o serviço público.

Essa situação expõe uma contradição estrutural: embora se reconheça que o sistema de saneamento ainda é deficitário e demande investimentos robustos, as receitas extraordinárias provenientes dos leilões podem ser direcionadas a qualquer área do orçamento estadual ou municipal. Cria-se, assim, um descompasso entre a origem dos recursos — vinculada ao serviço concedido — e sua aplicação prática, muitas vezes dissociada das necessidades do setor, o que contribui para postergar o alcance das metas de universalização.

Um caminho adequado para corrigir essa distorção seria a instituição de fundos especiais vinculados ao saneamento, administrados em regime de governança regional e alimentados pelas outorgas arrecadadas. Esses fundos poderiam cumprir dupla função: de um lado, viabilizar subsídios tarifários que assegurem modicidade e proteção aos usuários mais vulneráveis; de outro, financiar investimentos em infraestrutura, indispensáveis à expansão da cobertura e à melhoria da qualidade dos serviços prestados.

Nesse contexto, a experiência paulista do Fundo de Apoio à Universalização do Saneamento – FAUSP, regulamentado pelo Decreto nº 68.825/2024, representa um avanço relevante. Criado para administrar recursos provenientes de dividendos, juros sobre capital próprio da SABESP e outras receitas vinculadas ao setor, o FAUSP tem como finalidade prover apoio financeiro a ações de saneamento básico, inclusive voltadas à modicidade tarifária. 

Há lastro institucional para que esse modelo seja replicado nas concessões estruturadas com base em arranjo de regionalização e sob regulação setorial única, conforme diretrizes da Norma de Referência ANA nº 4/2024. Por outro lado, experiências recentes também mostraram que até a partilha das outorgas pode ser judicializada (ADPF 863-AL), o que reforça a necessidade de regras claras de vinculação e transparência sobre o destino dos recursos.

Outorgas que hoje se dissipam no caixa único podem — e devem — integrar a base financeira da universalização. Vincular a receita extraordinária ao próprio serviço é condição para transformar um ciclo de leilões bem-sucedido em resultados permanentes em saúde pública, dignidade e desenvolvimento

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