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É preciso celebrar avanços da Maria da Penha sem deixar de seguir construindo

Patrícia Werner

Diretora da Esnap

 

Vicente Braga

Presidente da Anape

 

“Onde houver, enquanto houver, uma mulher sofrendo violência neste momento, em qualquer lugar deste planeta, eu me sinto violentada”, com as palavras da ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, iniciamos essa reflexão sobre os 18 anos da Lei 11.340/2006, reverenciada mundialmente como a Lei Maria da Penha.

Um marco no combate à violência contra a mulher, a legislação é considerada pela ONU (Organização das Nações Unidas) uma das três melhores do mundo na defesa dos direitos femininos contra agressões. Originada a partir de árdua luta judicial da cearense Maria da Penha Maia Fernandes — paraplégica após tentativa de assassinato pelo ex-marido em 1983 —, a lei precisa ser celebrada neste momento em que completa a maioridade e a cada aniversário.

É preciso comemorar não só por causa dos avanços jurídicos que vieram a partir da lei, mas também porque a Lei Maria da Penha tem um papel didático essencial: nos lembra constantemente o quanto é inaceitável que uma mulher seja vítima de violência pelo fato de ser mulher.

Parece repetição de quem “bate na mesma tecla”, mas, infelizmente, mesmo depois de 18 anos da aprovação da lei, os índices de feminicídio seguem nos assustando – média de uma mulher assassinada a cada seis horas no país, segundo dados do Anuário Brasileiro da Segurança Pública 2024, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

No ano passado, 1.467 mulheres foram vítimas de feminicídio — o maior número desde 2015. Nada menos que 17 unidades da Federação apresentaram taxa de feminicídio acima da média nacional, de 1,4 mortes para cada 100 mil mulheres. Aumentaram também em 2023 as solicitações de medidas protetivas de urgência — 21,3% a mais em relação ao ano anterior — e as concessões, com 26,7% de deferimentos acima dos dados de 2022.

Não podemos dizer que os índices acontecem por deficiências no texto legal
Certamente, há espaço para aprimoramentos, mas a Lei Maria da Penha é bastante completa e abrangente. Ela reconhece cinco tipos de violência — sexual, psicológica, moral, física e patrimonial — e estabelece medidas protetivas de urgência em favor da vítima e seus dependentes, como prender em flagrante e punir com prisão preventiva o agressor, suspender a posse de armas, afastá-lo do lar, proibi-lo de se aproximar da vítima, de seus familiares e das testemunhas, entre outras.

A lei também prevê a preocupação com o futuro da mulher, determinando a inclusão dela em programas de assistência e capacitação profissional. Por diversas vezes, o Supremo teve que se manifestar para impedir interpretações equivocadas e limitantes do escopo da lei.

O STF vislumbrou a possibilidade de o Ministério Público dar início à ação penal sem necessidade de representação da vítima; e decidiu, por exemplo, que o juiz não pode, sem o pedido da vítima, marcar audiência para que ela desista de processar o agressor. A Suprema Corte também avançou ao reconhecer a constitucionalidade de legislação municipal impedindo a nomeação de condenados para cargos públicos e proibiu o uso da desrespeitosa tese de “legítima defesa da honra” em crimes de feminicídio.

É inegável que as medidas protetivas são eficazes na prevenção de novas formas de violência contra a mulher, mas os dados mostram que a concessão, por si só, não está sendo suficiente para que possamos evitar, de fato, a violência. Por isso, elas devem ser combinadas com outras estratégias de enfrentamento.

É imperioso o investimento na fiscalização do cumprimento das medidas protetivas e uma melhor integração entre as instituições de Segurança Pública e o Poder Judiciário. Todos os envolvidos precisam construir uma rede verdadeira de proteção à mulher vítima de violência, trabalhando na defesa, no auxílio, e, principalmente, na prevenção. A violência não pode acontecer.

Por isso, é necessário que a maturidade da lei inspire uma reavaliação da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra Mulheres. É fundamental que a Política funcione, com as ações preventivas e de assistência por meio de uma rede de atendimento articulada — isto é, com diversas oportunidades de acesso, denominadas portas de entrada (serviços de emergência na saúde, delegacias, serviços da assistência social). É um trabalho conjunto de assistência qualificada para que a mulher em situação de violência não seja, de maneira alguma, revitimizada,

Na avaliação das Políticas Públicas contra Violência de Gênero, é fundamental, igualmente, considerar a integração das diversas ações, em especial, as preventivas, que passam pela necessidade de investir na educação para compreensão do processo de violência contra a mulher, de forma pedagógica, em consonância com perspectiva da equidade de gênero, de raça e etnia.

Não se trata somente da criminalização de condutas, mas de todo um aparato que inclua saúde, assistência social, acesso à educação e ao trabalho, direitos sexuais e reprodutivos. É importante considerar, em suma, que a questão da violência contra a mulher envolve a saúde física, mental e social. Dessa forma, é fundamental o fortalecimento das ações do SUS (Sistema Único de Saúde) em consonância com a Lei Maria da Penha.

Há razões de sobra para se comemorar os 18 anos de vigência da Lei Maria da Penha, mas isso não significa que ela seja suficiente para conter a violência contra a mulher. Há muito a construir, como exposto. A Advocacia Pública, ao cumprir sua missão constitucional de consultoria e atuação permanente nos tribunais, tão bem representada na Anape (Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal), tem muito a contribuir na dramática luta cotidiana contra a cultura do abuso e em favor do respeito à condição feminina e da igualdade de gênero.

Patrícia Werner é procuradora do Estado de São Paulo, mestre e doutora em Direito pela PUC-SP e diretora da Esnap

Vicente Braga é presidente da Anape, advogado, procurador do Estado do Ceará, doutor em direto processual pela USP e pós-doutor em direito público pela Uerj

* Artigo publicado originalmente na Revista Conjur

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