Melissa Guimarães Castello
Presidente da FESDT - Fundação Escola Superior de Direito Tributário
Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul
Integrante do PAT-RTC
Professora da PUC-RS
Doutora em Direito pela PUC-RS
Mestre em Direito pela Universidade de Oxford
Autora do livro “Um novo IVA - Os tributos sobre o consumo e a economia digital”
Não adianta tentar pensar em outra coisa. Se você mora no Brasil, tem um mínimo interesse por política, e cuida do seu bolso, só falou em reforma tributária nos últimos dias.
E tem tanta coisa nova, que podemos passar os próximos anos falando disso. São dúvidas, inconsistências e necessidade de aprimoramentos...
Mas você já pensou como vai ficar a sua vida se, lá no futuro, por um lapso, esquecer de pagar o IBS? Quem vai cobrar essa conta?
As regrinhas de cobrança estão no PLP 108/2024, que, entre outras coisas, institui o Comitê Gestor do IBS (CG-IBS) e dispõe sobre o processo administrativo tributário desse imposto. Tá lá escrito que a fiscalização e a cobrança administrativa serão coordenadas pelo Comitê Gestor, mas que quem vai pôr a mão na massa e realizar as atividades serão os Estados e os Municípios (art. 2º, § 1º, VI). Já o contencioso administrativo será decidido pelos Estados e Municípios através do CG-IBS (art. 101), o que é extremamente positivo, por assegurar uma maior uniformidade nas decisões administrativas.
Mas e depois? Nos casos em que o contribuinte discutiu na esfera administrativa e foi mantida a cobrança tributária do IBS, como segue?
Se a gente for lembrar lá das aulas de direito tributário, depois que o lançamento se torna definitivo (ou seja, depois de encerrada a discussão na esfera administrativa), o crédito deve ser inscrito em dívida ativa, para seguir seu caminho de cobrança forçada.
E aqui é sempre bom pensar sobre o que significa essa “inscrição em dívida ativa”: ela é “ato de controle administrativo da legalidade”, segundo o art. 2º, § 3º, da Lei de Execuções Fiscais. Ou seja, é o momento em que um agente público vai lá e controla a atuação de outro agente público, para verificar se ele agiu de acordo com a lei.
Na maior parte dos Estados brasileiros, a inscrição em dívida ativa é ato de competência privativa dos Procuradores. São eles que fazem essa última checagem da legalidade do lançamento tributário, antes de cobrá-lo (em juízo ou extrajudicialmente). E não é nenhuma surpresa que essa atribuição seja dos advogados públicos: nos termos do art. 132 da Constituição, eles são os responsáveis por interpretar a lei e dar orientação jurídica. Logo, dão essa orientação sobre cobrar ou não o tributo.
Faz sentido, né?
Mas não é isso o que está previsto no PLP 108/2024...
Nesse projeto de lei, foram “preservadas” as competências dos Estados e Municípios. Na prática, o legislador ficou com medo de mudar o status quo, e decidiu que naqueles Estados e Municípios em que o controle de legalidade é exercido pela advocacia pública – como deve ser, à luz das diretrizes constitucionais – continua-se fazendo dessa forma. Mas naqueles Estados e Municípios em que a inscrição não é feita pela advocacia pública... É, continua não sendo feito.
Ruim, né? Controle de legalidade exercido por alguém que não é advogado... Soa estranho... Alô, OAB!
Mas nossos problemas NÃO acabaram: sob a ótica do contribuinte (aquele que, lá no início desse texto, por um lapso, não pagou o IBS), isso gera complexidade. Se ele deixar de pagar o IBS devido ao Estado de São Paulo, por exemplo, a inscrição será feita pela Procuradoria-Geral do Estado, e todo o processo de negociação para pagamento será feito lá. Mas, se ele deixar de pagar para o Estado do Rio Grande do Sul, a inscrição em dívida será feita pela Secretaria da Fazenda, e talvez ele negocie com a SEFAZ, mas talvez tenha que ir na PGE. Depende da vontade do auditor fiscal de mandar ou não o processo para o jurídico... De acordo com o art. 2º, § 4º, do PLP 108/2024, ele tem longínquos 12 meses para mandar o processo para a PGE...
Não tá nada bom.
E é por isso que a Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal – ANAPE, juntamente com o Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal – CONPEG, elaboraram proposta de emenda ao PLP 108/2024, propondo exatamente que a inscrição em dívida ativa, como ato de controle de legalidade que é, seja de competência dos advogados públicos.
Sempre vale lembrar que um dos princípios dessa reforma é a simplicidade (art. 145, § 3º, da Constituição), e que ficar mandando o contribuinte de um lado para o outro, por medo de alterar o status quo, não está alinhado com o espírito da reforma!