A eclosão da Operação Porto Seguro alertou a sociedade para a necessidade de compreender a real dimensão de projetos de lei que fragilizam instituições tão caras à construção da segurança jurídica e ao amadurecimento do processo democrático no país.
Tal reflexão traz a noção do risco de aprovação de projetos como os que reestruturam a Advocacia Geral da União ou a Procuradoria Geral do Estado de São Paulo para a estabilidade e lisura das relações jurídicas integradas por entes estatais.
Por outro lado, na mesma proporção em que evidencia uma crise no íntimo de instituição tão cara ao equilíbrio do Sistema de Justiça, a deflagração da operação policial Porto Seguro impõe discussões em torno da real dimensão da autonomia dos órgãos de Advocacia Pública, para que se possam apontar soluções para o atraso que lhes é imposto, se comparados com as demais estruturas essenciais à Justiça.
Não podemos deixar de acreditar, aliás, em que foram as circunstâncias anunciadas de vendas de pareceres chancelados por agentes da cúpula da Advocacia Geral da União um dos elementos fundamentais da admissibilidade da PEC 452/2009 pela CCJ da Câmara dos Deputados, no último dia 27 de novembro, possibilitando maiores discussões sobre o tema.
Também foram as circunstâncias que deram ensejo à consolidação do referencial democrático. No curso desse processo, o tema corrupção sofreu várias transformações que combinaram a preocupação pelo sentido da história com os intensos debates sobre a organização institucional dos Estados, para o controle de práticas degenerativas das ordens jurídica, social e econômica.
Foi desse modo que a crise da modernidade e suas repercussões na organização da vida política contemporânea trouxeram uma nova estrutura funcional do Poder.
O pensamento político do século passado modificou a ótica simplista da ilegalidade formal, para pensar a corrupção em seu sentido etimológico, pautando o problema como algo referente à putrefação da ordem constituída, na sua ligação não mais apenas com a ideia de arbitrariedade, usurpação, desvio, mas também de justificação, desocultação e responsabilidade. Trouxe à tona, portanto, um novo e mais complexo sentido de justificação normativa de fundo moral da política e de organização e controle de qualquer parcela do Poder.
No que diz respeito ao Sistema de Justiça, ele está muito bem delineado no Título IV, Capítulos I e II, da Constituição Federal. É o Poder Judiciário e as Funções que lhe são essenciais, sem as quais a democracia, o equilíbrio funcional do Poder e a ordem tendem a se degenerar. Nesse sistema, os advogados, públicos ou privados, possuem características essenciais: a indispensabilidade, a inviolabilidade e a independência imprescindíveis ao exercício da relevante função social que lhes é conferida.
Essas características são elementos fundamentais para o exercício de quaisquer das competências constitucionais voltadas à interpretação e discussão dos textos legais que consagram a visão legítima do corpo social.
A construção da identidade pública é um processo fundamental, e, quando essa identidade não é clara, a sua apropriação privada se torna ainda mais possível. Infelizmente, foi isto o que sempre se procurou fazer com a Advocacia Pública através da confusão do seu papel com o do Ministério Público, num extremo, ou com o de uma simples advocacia de governo, em outro.
Com a desnaturação das suas características profissionais se procura subordiná-la e submetê-la ao contágio de interesses alheios ao conjunto dos interesses da sociedade, em prejuízo do objetivo de lhe fornecer informação de progressiva institucionalidade de combate à corrupção no Brasil.
A Advocacia Pública, assim, permanece à mercê do oportunismo corrupto, fruto do inchaço da máquina pública e da criação e distribuição desenfreada de cargos com critérios exclusivamente políticos, que rompem o equilíbrio de forças legitimadoras dos atos estatais, em claro favorecimento de grupos que, por si, não representam o interesse público.
A sua organização institucional imposta pela Constituição Federal refuta projetos como o de Lei Complementar n. 205/2012, enviado ao Congresso Nacional pelo Advogado-Geral da União, sem maiores discussões, no seio da carreira, e com regras que afrontam princípios jurídicos consagrados e fragilizam vários pressupostos de atuação dos advogados públicos.
Será impossível consolidar o Estado Democrático de Direito, sem assegurar a boa atuação dos agentes responsáveis por sua preservação e defesa. A condição de autoridade refém de conveniências políticas compromete a atuação do advogado público e garante um porto seguro a grupos desvirtuados que estilhaçam a aura de decência exigida das instituições públicas.
Marcello Terto
Procurador do Estado de Goiás,
Presidente da Associação Nacional dos Procuradores de Estado