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Proposta de utilização da linguagem simples e do Direito Visual (Visual Law) como novo paradigma de atuação dos litigantes habituais (repeat players) nos Juizados Especiais

 

O brasileiro é, sem dúvida alguma, um povo de fé, o que é importante para, juntamente a outras habilidades, talentos e competências, vencer os desafios que são colocados na sua trajetória.

Mas para uma parcela importante de pessoas em situação de vulnerabilidade que procuram o Poder Judiciário no setor de "atermação" dos Juizados Especiais1 na defesa de direitos sensíveis (em muitos casos na defesa de direitos fundamentais), a propositura de uma demanda judicial se revela, pura e simplesmente, como sendo um ato de fé.

Explico: Tal como acontece com o indivíduo que faz uma aposta na casa lotérica (marca os números e aguarda, com fé, o resultado do sorteio), em uma avalanche de processos judiciais que tramitam nos fóruns espalhados pelo país envolvendo questões de saúde pública (SUS) e suplementar (planos de saúde), Direito Previdenciário, Direito do Consumidor (comércio eletrônico, telefonia e internet, empréstimos bancários, etc.), ou seja, as chamadas "demandas de massa", o cidadão ingressa no fórum, explica o seu caso no setor de "atermação" e nada mais faz do que aguardar o resultado final do processo, pois não há um diálogo efetivo (em contraditório) com a parte contrária. O cidadão propõe a ação e aguarda a sentença.

Essa ausência de um efetivo diálogo ocorre porque, para além da vulnerabilidade social, os litigantes que possuem esse perfil (buscam a justiça no JESP sem advogado) também se encontram em estado de "vulnerabilidade informacional", ou seja, não tem conhecimento preciso dos detalhes da relação jurídica de direito material aliado a uma grande dificuldade de se comunicar (entender e se fazer entendido).

É uma "luta" desigual, estilo Davi e Golias, em que figuram, de um lado, o cidadão hipossuficiente (conforme dados extraídos do sítio eletrônico INAF2, parcela ainda muito significativa de pessoas entre 15 e 64 anos ainda são analfabetas funcionais) e, do outro lado, os chamados litigantes habituais ("repeat players"), que, além do amplo acesso aos recursos tecnológicos e amplo conhecimento da relação jurídica de Direito material, contam normalmente com corpo jurídico permanente e qualificado e que se expressa nos processos de forma prolixa, complexa e erudita (o chamado "juridiquês").

Trata-se, pois, do "muro da linguagem", uma barreira cognitiva absolutamente intransponível para uma parcela muito significativa de pessoas que buscam os Juizados Especiais na defesa dos seus direitos, o que compromete o contraditório substancial (não há diálogo efetivo entre as partes) e o próprio acesso à justiça (cidadão figura como expectador ao invés de protagonista na defesa dos seus direitos).

É dentro desse contexto e sob inspiração do Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples3 que foi concebido e implementado um projeto-piloto batizado de "Projeto Bom Combate", que consiste na utilização da técnica da linguagem simples e de recursos visuais (visual law) nas contestações protocoladas pelo Estado de Minas Gerais em ações judiciais propostas por pacientes do SUS pleiteando tratamentos de saúde4 em substituição à forma tradicional de elaboração das defesas, que compreende um texto normalmente prolixo com uma linguagem complexa e erudita, de difícil compreensão pelo cidadão. Com o objetivo de incrementar ainda mais a acessibilidade, há um ANEXO nas contestações contendo um link e um QR CODE que remetem o leitor a vídeos5 em que a defesa é explicada de forma ainda mais simples, inclusive com legendas em Libras (Língua Brasileira de Sinais).

O projeto nasceu sob inspiração do Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples e a partir da premissa de que tão importante quanto receber, ao final, uma sentença de fácil compreensão é dar ao cidadão, desde o início do processo, condições para efetivamente dialogar em contraditório e defender com desenvoltura e desembaraço os seus respectivos direitos, o que se faz pela compreensão do que está escrito na defesa (redigida em linguagem simples), ou seja, da remoção da barreira cognitiva da linguagem.

Essa mudança de rumos (introdução do diálogo onde ele não existia em essência, mas apenas formalmente) contribui para um efetivo acesso efetivo à justiça (tornando-a mais inclusiva), gera valor para o cidadão destinatário do serviço público (terá uma melhor experiência no processo judicial: dialoga ao invés de apenas observar o que acontece), favorece a realização de melhores acordos entre os litigantes (mais fácil convergir a partir daquilo que se entende) e resulta em um conflito mais bem pacificado (ganhando ou perdendo o cidadão saberá o motivo).

Muito embora possua um alto grau de exportabilidade (o projeto-piloto hoje está restrito às demandas propostas pelos paciente do SUS contra o Estado de Minas Gerais pleiteando tratamentos de saúde, mas é possível estendê-lo para toda advocacia pública estadual, federal e municipal e também para os litigantes habituais na esfera privada), a ideia divide opiniões e está longe de agradar parcela importante dos operadores do Direito. Ainda há um longo caminho a se percorrer na democratização do debate nos processos judiciais dessa natureza.

Mas o que se propõe com o projeto "Bom Combate" e, de forma geral, com a adoção da técnica da linguagem simples em processos dessa natureza (ações propostas pelo cidadão sem a representação por advogado) não é a generalização, mas uma adaptação do discurso em um local específico de discussão (design não é enfeite, mas funcionalidade), de forma a torná-lo acessível ao usuário do serviço público (cidadão), proporcionando a ele uma melhor experiência e ao Poder Judiciário um melhor funcionamento (uma justiça mais inclusiva). Espera-se que o compartilhamento da ideia e da iniciativa adotada na advocacia-geral do Estado de Minas Gerais desde fevereiro de 2024 outros litigantes possam se interessar e se disponham a também combater o BOM COMBATE!

                                                                                           

                                                                                            Gustavo Luiz Freitas de Oliveira Enoque
                                                                                            Procurador do Estado de Minas Gerais

 

*Artigo publicado no site do Migalhas

 

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